Pretendo demonstrar porque o artigo 354 do Código Civil (Lei 10.406/2002) não tem nenhuma relação com a prática do anatocismo, que é a incorporação de juros ao saldo devedor em período inferior a um ano, conforme o artigo 4º da Lei da usura (decreto-lei 22.626/33), artigo 591 do Código Civil, e Súmula 121 do STF.
O artigo 354 do CC é uma norma sem nenhuma efetividade e que vem sendo amplamente utilizada para reivindicar, defender, um direito que este artigo não prevê! O artigo vem sendo utilizado para tentar que seja permitida a capitalização mensal de juros em dívidas de contratos de empréstimo.
De forma resumida o artigo prevê: “Havendo capital e juros, o pagamento imputar-se-á primeiro nos juros vencidos, e depois no capital (...)”.
O texto do final do artigo fala da exceção, situação onde a norma acima não é aplicada, portanto não interessa para este estudo. O artigo começou a ser utilizado na Tabela Price. Os advogados das instituições financeiras aproveitaram a redação do artigo e o desconhecimento geral sobre a Tabela Price, e começaram a dizer que:
“ o sistema gera prestações, que já têm juros, então como o 354te obriga a pagar logo primeiro os juros, eles são pagosmensalmente e em nenhum momento os juros sereincorporam ao saldo, e desta forma não ocorre anatocismo...”
Um verdadeiro absurdo, claro!
Primeiro, porque o artigo nada tem a ver com o caso, que é regido pelo artigo
591 do Código Civil, e segundo, assunto para outro momento, que a Tabela Price capitaliza juros mensais sim, tanto que seu criador a chamava de “Tabela do
Juro Composto”.
Nada contra os advogados que usam uma norma tentando com ela obter um resultado que ela não produz! Ou seja, o advogado "joga a ideia pra ver se cola", já sabendo que aquela norma não se aplica ao caso.
Devemos ser contra o juiz e
o perito que aceitam o embuste, pois esses sim têm a obrigação de impedir que
artigo seja utilizado para produzir resultado para o qual ele não foi criado
para produzir.
Mas aconteceu, a ideia errada foi se propagando, os advogados foram vencendo suas demandas e chegamos ao ponto de magistrados e peritos contábeis utilizarem essa praga deste artigo 354, não só na Tabela Price (90% dos financiamentos no Brasil), mas também no CHEQUE ESPECIAL, com aquela tese esdrúxula que diz :
“se no dia do pagamento de juros houver um depósito igual ou
maior do que o valor dos juros, os juros então seriam pagos
sem que houvesse o anatocismo, pois os juros não foram
incorporados ao saldo da conta, novamente graças ao artigo
354 do código civil. "
Outro argumento desprovido de qualquer embasamento jurídico, contábil e financeiro, um embuste! Quer dizer, você pode ficar o mês TODO devedor, se no dia que você pagar os juros receber algum dinheiro, já era! Não houve anatocismo por causa desse depósito neste dia! Bom, vamos entender o que
significa essa norma "medieval" através de um exemplo:
PAULO emprestou para PEDRO R$ 100,00 (cem reais) em JANEIRO e disse: Vou te cobrar 10% ao mês! Então no mês que vem você me dá R$ 110,00...
PEDRO só apareceu (só demonstrou vontade pagadora) em SETEMBRO, OITO MESES APÓS O VENCIMENTO, e mesmo assim, com R$ 90,00 (noventa reais).
QUAL O SALDO DEVEDOR DE PEDRO APÓS O PAGAMENTO DE NOVENTA REAIS? AQUI ENTRA O ARTIGO 354!
Resposta: Existem DUAS RESPOSTAS POSSÍVEIS:
(só existe UMA resposta, a primeira, eu estou afirmando DUAS respostas justamente para explicar a hipótese onde se aplica o artigo 354).
PRIMEIRA resposta: A conta que 99% das pessoas fariam:
1) Valor principal: 100;
2) Cômputo dos Juros: 8 meses, 10% ao mês, 80% de 100 = 80;
3) Principal + juros: 100 + 80 = 180;
4) Abatimento do pagamento : 180 – 90 = 90.
Ou seja, PEDRO ainda deve 90 reais para PAULO.
SEGUNDA resposta: (HIPÓTESE QUE EXPLICA O ART. 354).
A conta que ninguém faria, só o cuidadoso legislador do artigo 354, antigo 993 do código civil de 1916:
1) Valor principal: 100;
4) Abatimento do pagamento : 100 – 90 = 10;
2) Cômputo dos Juros: 8 meses, 10% ao mês, 80% de 10 = 8;
3) Principal + juros: 10 + 8 = 18.
Ou seja, PEDRO ainda deve 18 reais para PAULO. Faz algum sentido?
AQUI ESTÁ O ARTIGO 354 DO CÓDIGO CIVIL!
Ele serve para impedir que ocorra essa segunda hipótese acima. Repare na ordem 1, 4, 2, 3, em vez de 1, 2, 3, 4, como na primeira hipótese!
“Havendo capital e juros, o pagamento imputar-se-á primeiro nos juros vencidos, e depois no capital (...)”.
"Traduzindo" o artigo e aplicando no exemplo:
“Havendo capital e juros, a ordem é 1, 2, 3, 4, e não 1, 4, 2, 3, ...”
O artigo 354, neste exemplo, impede que a dívida de PEDRO, que é de 90 reais (primeira hipótese) seja reduzida para 18 (segunda hipótese).
É isso. Convenhamos, essa segunda hipótese, hoje em dia, ninguém precisa de lei para coibi-la. É só imaginar uma dívida VENCIDA, e que o devedor deseja pagar com atraso e sabe que incidirão juros por causa disso. O devedor tem a oferecer um valor menor do que o principal.
O devedor nunca irá querer que esse valor seja abatido primeiro do principal, sem juros, e depois que os juros incidam sobre a diferença, e não vai querer por causa da existência do artigo 354 do código civil, mas pelo simples fato de que esta segunda hipótese hoje em dia não faz mais nenhum sentido.
VISÃO TOPOLÓGICA DO ARTIGO NO CÓDIGO CIVIL
Ora, a visão topológica no Código Civil é muito importante. Onde está o artigo 354 no código civil? Vejam, o artigo 354 fica na Parte Especial do diploma, no Livro I, que trata do Direito das Obrigações, no Título III, que trata do ADIMPLEMENTO E EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES, no Capítulo IV, que trata da IMPUTAÇÃO DO PAGAMENTO:
LIVRO I ─ DO DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
TÍTULO III ─ DO ADIMPLEMENTO E EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES
CAPÍTULO IV ─ DA IMPUTAÇÃO DO PAGAMENTO
Fica fácil ou difícil perceber que o artigo 354 dispõe sobre o instituto da imputação do pagamento?
Agora, sobre ANATOCISMO, vejamos o artigo 591 do MESMO diploma :
PARTE ESPECIAL
LIVRO I – DO DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
TÍTULO VI – DAS VÁRIAS ESPÉCIES DE CONTRATO
CAPÍTULO VI – DO EMPRÉSTIMO
SEÇÃO II – DO MÚTUO
Artigo 591 do Código Civil:
"Destinando-se o mútuo a fins econômicos, presumem-se devidos juros, os quais, sob pena de redução, não poderão exceder a taxa a que se refere o art. 406, permitida a capitalização anual."
Ficou claro agora? Alguma dúvida de que o artigo 354 NÃO SE REFERE A CONTRATOS DE EMPRÉSTIMO?
Partindo da premissa que quando se lê PERMITIDA A CAPITALIZAÇÃO ANUAL, não fica claro que está PROIBIDA A CAPITALIZAÇÃO MENSAL, SEMESTRAL, TRIMESTRAL OU DIÁRIA?
BONS LINKS NA INTERNET
1) Como muito bem diz o professor PABLO STOLZE GAGLIANO:
“forma especial de pagamento sem grande expressividade
prática é a imputação do pagamento."
Em http://pablostolze.com.br/2013.2.LFG.Obrigacoes_04.pdf
Resolução do BACEN 2.878/01, artigo 18, inciso I:
“forma especial de pagamento sem grande expressividade
prática é a imputação do pagamento."
Em http://pablostolze.com.br/2013.2.LFG.Obrigacoes_04.pdf
2) O excelente artigo do advogado Gerson Luiz Armiliato (A capitalização de juros e a imputação em pagamento nas operações em conta-corrente), que cita a resolução 2878/01 do Banco Central, que prevê que o banco não pode se apropriar automaticamente de nenhum valor do correntista:
Resolução do BACEN 2.878/01, artigo 18, inciso I:
“é vedado as instituições transferir automaticamente osrecursos da conta de depósitos à vista (...) para realizarqualquer operação sem previa autorização do cliente.”
É o melhor estudo sobre o
artigo 354, na minha opinião. Além da resolução acima, Gerson explica que
contabilmente aplicar o 354 é uma verdadeira farsa contábil:
“Opera-se assim, verdadeira FRAUDE CONTÁBIL emdesfavor do correntista que ganhou o direito de receberde volta os valores pagos a título de capitalização, poisem aplicada essa ficção no cálculo, os bancos pouco ounada devolvem ao correntista a título de capitalização,eis que no cálculo fictício a capitalização é mascaradae fica aparentemente inexistente.”
(Em ARMILIATO, Gerson Luiz. A capitalização de juros e a imputação em pagamento nas operações em conta-corrente. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2226, 5 ago. 2009. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/13274).
3) O excelente artigo de Eduardo Antonio Temponi Lebre, onde ele menciona que :
“A extinção da obrigação pela imputação do pagamento ocorre na existência de várias obrigações líquidas e vencidas, não sendo o pagamento suficiente para extingui-las, o devedor (art. 352), ou o credor (art. 992 CC/revogado e art. 353 do Novo Código), ou por ordem de vencimento ou de valor (art. 994 CC/revogado e art. 355 do Novo Código), fica determinado qual obrigação o pagamento extinguirá. E, se alguma das dívidas for de juros e não houver pacto em contrário, esta será imputada em primeiro lugar (art. 993 CC/revogado e art. 354 do Novo Código).
Em:
http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6200
4) O brilhante estudo do juiz Alberto Marques Dos Santos, sobre REGRAS CIENTÍFICAS DAS HERMENÊUTICA, ajuda a entender porque o artigo 354 difere do artigo 591, não só no texto, pois o artigo 591 fala em CAPITALIZAÇÃO DE JUROS , mas também diferem no CAPÍTULO e até no TÍTULO : (GRIFEI)
13ª regra - A posição do dispositivo no texto esclarece seu alcance.43. — A regra conclama à interpretação sistemática, que, em certa medida, inclui uma interpretação “topológica”. O lugar em que determinada disposição é inserida, dentro do texto legal, pode indicar algo a respeito da sua abrangência e alcance. O texto legal é organizado em partículas principais, os artigos, que podem ser subdivididos em sub-partes, fragmentos subordinados, que são os parágrafos, os incisos, as alíneas. É intuitiva a noção de que as disposições de um inciso têm abrangência limitada às hipóteses ou à situação contemplada no artigo a que o inciso está subordinado. Um artigo e seu parágrafo subordinado guardam, geralmente: a) uma relação de regra geral/exceção, onde o parágrafo institui regras que contrariam a norma geral do seu caput, excepcionando-a; ou b) uma relação de genérico/específico, onde o caput estabelece os contornos gerais de um mandamento, e os parágrafos explicitam aspectos ou desdobramentos da hipótese [69].
Este último artigo (4) foi exibido principalmente pelo seguinte: o artigo 354 do código civil, em sua essência, ele prevê a capitalização de juros! "...pague primeiro os juros, depois o capital...".
Se agente for pensar bem, simplesmente NÃO FAZ SENTIDO JURO SEM SER CAPITALIZADO! Isso mesmo, pois juro é preço do dinheiro, ora se eu estou apurando juros sobre algum capital eu quero recebê-lo!
Então o artigo 354, quando diz que tem pagar primeiro os juros está privilegiando, prevendo, ordenando, a incorporação dos juros ao capital, claro!
Ora, então há um conflito aparente de normas? Então o artigo 354 manda capitalizar e o 591 diz que só pode anual, qual o que vale? NENHUM CONFLITO! Simplesmente o 354 trata de assunto diferente de capitalização de juros, ele trata de imputação do pagamento, de dívida já vencida, e por isso nem fala de período, pois a norma tem outro interesse.
Concluindo, portanto, o artigo 354 do código civil, em um ambiente sério de estudo jurídico e matemático, em hipótese alguma pode ser utilizado como uma justificativa para a permissão do anatocismo em contratos bancários, ou pior ainda, para sustentar que em respeito ao artigo 354 é que não ocorre o anatocismo, uma aberração jurídica e financeira maior ainda.
Perito Judicial Contábil
4 Comments
Li várias teses e somente essa abriu os horizontes, resumindo :
ResponderExcluiro judiciário é intrumento de justiça dos Bancos,sem dúvida alguma;
quanto ao cliente/consumidor, a Deus dará...
Fico honrado pelas suas palavras, muito obrigado!
ExcluirMuito lúcida a abordagem do tema pelo autor. Na minha opinião, a determinação dessa aplicação pelo Judiciário fere frontalmente a realidade dos fatos e mostra o quanto os juízes são mau orientados por peritos que não têm compromisso com a ciência.
ResponderExcluirValeu Mario! Precisando de qualquer cálculo, analisar, impugnar, recalcular cálculos feitos por outros peritos, conte comigo.
ResponderExcluirUm abraço
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